O Herói do Apocalipse

O dedo enrugado aponta para o céu negro. A mesma cor do paletó do velho que está esticando o braço para o alto na direção de seus olhos. A outra mão encontra-se dentro dentre de suas vestes na altura do abdômen. Algum problema intestinal, alguém poderia imaginar, ou um idiota louco imitando Napoleão Bonaparte.

- Não está vendo? Não consegue ver?

Igor sentia-se confuso. Seu relógio de pulso já marcava quinze para dez da noite; estava cansado, o dia todo fez uma pesquisa árdua sobre a história de Atlântida para uma universidade. Depois disso, tinha que aturar um velho maluco que apontava para o céu.

- São luzes! De todas as cores! Outra raça vem vindo para nos dizimar! Você não vê?

Na frente deles, apenas casas silenciosas. Os dois homens encontravam-se na calçada vazia naquele instante. Igor se sentiu ridículo em ter que ouvir aquelas lorotas.

- Senhor, que tal se formos para nossas casas?

- Não vê? Será que só eu consigo? Deus me deu esse dom! Sim! Sim! É o Apocalipse, e eu serei o herói. Isso é demais! - ele sorriu com os dentes amarelos de cigarro - Meus pulmões estão acabados, minha vida está no fim, mas vou morrer salvando todos vocês!

- Senhor, faça-me a gentileza...

Nesse momento Igor prestou atenção no que havia dentro do paletó do homem. Algo que ele segurava. Algo que fazia volume...poderia ser uma faca? Não! Um cutelo?...Ele sentiu um frio na barriga. Que fosse um escovão de dentes de cavalo, só o fato de estar parado na noite conversando com um estranho lhe dava medo. Lembrava o que ocorrera com o seu pai que andava por aí. Foi atacado por uma mulher grávida que estava com um bisturi. Ela queria tirar o bebê ali na rua mesmo, abrir um buraco em seu ventre e fazer um aborto solitário. O pai de Igor não deixou, e a mulher acabou cravando o objeto metálico na coxa do homem. Se não se pode nem confiar em uma mulher grávida, imagine um homem que fala sobre luzes no céu?

- Os seres de outra raça vão invadir! Eu pude ver! Deus me guiou. Não virão discos voadores, como todos pensam nos mitos e sim aviões da Segunda Guerra Mundial com a velocidade cinco vezes maior que a do som. Aviões que piscam com o reflexo do Sol. Eles não vão lançar raios de derretimento, vão lançar meteoritos capazes de transformar essa cidade em pó. É o fim do mundo! - Senhor, preciso ir para casa...

- Só eu tenho o objeto que pode nos salvar das forças alienígenas. - o velho tira a coisa do paletó e mostra a Igor. - Um guarda-chuva de prata. O mais novo olhou e segurou uma risada.

- Eu tenho várias dessas e vou proteger a todos antes que os extraterrestres cheguem. Eu posso fazer o serviço divino.

- Você precisa ser internado, homem.

Igor vira-se e segue seu caminho. Cairia na cama logo em seguida e só acordaria para realizar o trabalho que tanto adorava. A História é algo interessante, e isso fez Igor lembrar-se de aviões da Segunda Grande Guerra, os aviões que viriam...ele olhou para o céu. Bateu uma pequena ponta de desespero, e ele lembrou de quando seu pai lhe contou o acontecimento da mulher grávida. O garoto teve pesadelos com aquilo...sim, ela cortava o ventre, a ponta do bisturi ia lentamente rasgando sua pele e carne...Por quê não um parto normal? Porque ele é obra do Demônio. Lembrava imaginando isso.

Lembrava que o garoto saía de dentro da barriga da mulher. Era um bebê com o crânio deformado, o cérebro não fora coberto pelo osso e estava exposta. Era pequenino. Um pós-feto com a pele cinzenta. Não parecia humano...o bebê abria os olhos. Lá só havia o vazio. A mãozinha estendia-se em direção ao garoto que estava ali... "Eu preciso comer para ficar mais fortinho, IGOOOOOOOR!" Ele simplesmente arregalava os dentes pequeninos e mal-formados, logo em seguida, caía morto.

AAAAAHHHHHHHHHHHH!

"IGOOOOOR, você está dodói?" - veio um súbito pensamento no momento da dor.

Entrou e raspou numa vértebra e perfurou o diafragma do homem. O sangue começou a fugir daquele buraco criado. A pele das costas de Igor parecia estar fazendo um bom sexo oral para o que penetrava.

Igor, com a boca aberta e os olhos esbugalhados, olhou para trás e só viu o velho bradar:

- Estou te salvando!

O cabo do guarda-chuva tinha um fim parecido com uma lança. Melado de um vermelho mórbido sob a luz da Lua. O velho penetrou o objeto no ombro do mais novo. O sangue esguichou. Houve cinco perfurações em locais diferentes.

Igor caiu de joelhos, colocando as mãos numa ferida no estômago. Os dentes estavam sujos de vermelho, pois acabara de vomitar um pouco do próprio sangue em cima de sua camisa. Ainda sentia o líquido quente incomodar sua traquéia.

O velho pegou um papel do bolso de seu paletó e mostrou a Igor moribundo.

- Essa será a próxima pessoa que eu vou colocar proteção. Deus disse que é isso que tenho de fazer. Minha missão de proteção! Você sabe como isso me orgulha?

Igor viu a foto e o endereço...de sua mãe.

O cabo de guarda-chuva afundou do topo de seu crânio até um ponto em que não era mais visto. Enterrado no corpo do mais novo, como se ali fosse um macabro sepulcro de objetos metálicos. O guarda-chuva estava aberto, cobrindo o corpo de Igor que estava encostado, agora, na parede.

- Os meteoritos não vão cair em você! Você tem a proteção do Senhor! A proteção divina! Você é um baita de um sortudo.

O velho foi correndo até a sua casa onde estava lotado de guarda-chuva de prata. Tinha que ser rápido. Há muitas portas para bater, há muita gente para encontrar, há muito trabalho a ser feito.

por Saulo Dourado