Felinos

As nuvens estavam negras e pareciam ser uma visão apocalíptica. Quase preto. Os ventos assobiavam como se estivessem chamando as pessoas para os acompanharem para um destino incerto. As folhas das árvores balançavam num ritual mórbido. A chuva estava vindo. Possivelmente uma tempestade. Uma garoa caía sobre o telhado daquela casa velha mas bem conservada...em meio a uma plantação agrícola.

Uma residência de campo.

Em suas entranhas...dois velhos(um homem e uma mulher)e uma vizinha deles(não que fosse logo ao lado, mas não deixava de ser vizinha)tomavam um chá enquanto falavam de histórias da cidade, se aconchegando em casacos de lã.

- Vai mais chá? - perguntou Marcos de setenta anos mas ainda trabalhava em sua plantação com inchada e tudo. Um homem trabalhador é eterno. Parar é cair na utilidade. Faze-lo é soltar-se um pouco de sua capacidade humana. Os homens têm que trabalhar até a morte...aí sim é a época de descansar.

- Não, obrigada. - disse a vizinha Marina de quarenta anos com um aspecto de ser mais velha pelo o número maior de gordura... sendo eufêmico - Mas aceitaria um café.

- Faça pra mim também, Marcos! - gritou Cláudia quando o marido já penetrava na cozinha cheia de leite de vaca, queijo caseiro e galinha caipira.

Dois gatos apareceram na sala...era o Baba e Babona. Dois nomes grotescos mas que Cláudia adorava. Eram os felinos em que ela alimentava desde que eles eram filhotes. Ela os pegara na feira, na barraca da Dona Leni que não agüentava mais cuidar de tantos gatos e eles sempre rasgando um sofá dela como se dinheiro caísse do céu. Um dos bichos de Dona Leni morreu brincando com uma inchada...estava na fase de transição: filhote - adulto. Talvez uma adolescência felina...o objeto que não estava muito bem apoiado na parede desceu, caiu com força e sua parte metálica quebrou a coluna vertebral do animal ao meio. Este miava em desespero balançando as pequenas patas brancas e rosa no ar pedindo socorro, debatendo seu corpo numa tremedeira terrível... Leni chorou muito quando seu marido em piedade ao bicho, atirara com sua espingarda na cabeça dele, fazendo-a simplesmente desaparecer em fragmentos cranianos e cerebrais.

- Você é muito gentil, Marcos! - falou Marina quando recebeu uma xícara com café forte como ela mesma gostava.

- Quer que eu coloque leite? - indagou o homem que avaliava as coxas irregulares da mulher...transara com ela há vinte anos anteriores, mas quando ela era nova e ele ainda aproveitando os prazeres da juventude mesmo sendo um cinqüentão e...Ah!... a experiência de ser um adúltero.

- Em falar nisso...bote o leite para os gatos, meu querido. - um trovão fez com que nenhum deles ouvissem as duas últimas palavras da frase que Cláudia formulara. A chuva ficou grossa e começava a cair com ameaça em cima dos telhados.

- Vai desabar um toró. - comentou a vizinha.

- Bom pras plantinhas! - falou o homem sorridente. Qualquer urbano que o ouvisse falar uma coisa dessas, ia chamá-lo de um completo idiota ou...Mamá É Maravilha nas sextas de noite...mas, bah! A sociedade urbana é grotesca demais às vezes.

No canto da sala, os gatos estavam de quatro(como normalmente)mas em alerta. Suas orelhas subiram e o cheiro que sentiam não era estranho...um cheiro que vinha com a chuva...os seus donos nem a amiga deles sentia o que eles sentiam...pois só eles podiam sentir! Não fedia mas também não era nenhum perfume da Boticário.

E aquele odor entrava...expandia-se dentro dos corpos dos felinos e principalmente em seus cérebros...mudando-lhes a forma de pensar, a forma de agir...mudava-os...e isso ocorria em toda a cidade...mas só com os gatos...aquela chuva era diferente de todas.

- Eu já vou botar. - disse Marcos encaminhando-se com uma tigela de plástico e de cor laranja para poder colocar o leite. Aquele prato tinha uma história macabra e quase ridícula...certa vez um rato pequeno amanheceu morto dentro dele...parecendo que boiava naquele mar branco. Morrera afogado, debatendo-se para sair do líquido. Os seus pulmões ficando cheio do que alimentava os seus inimigos. Indiretamente, Baba o assassinara. Pois bebeu na tigela de sua companheira naquela noite. Ela não estava com muita fome.

Marcos já voltava para o lugar onde os bichos estavam...já com seus alimentos em mãos. A mãe dele sempre o ensinara a ser um educado, mas talvez um complexo de disciplina o tenha invadido, pois ele se comporta como um mordomo dentro da casa e Cláudia já estava mal-acostumada na vida de princesa. Ela só fazia lavar a louça e cozinhar e nem isso mais naqueles tempos, pois com o aumento do lucro no orçamento, eles comiam no restaurante do Seu Filipe que ficava logo perto da casa.

- Esses gatos são ligeiros! Já saíram do lugar! - exclamou o velho sempre sorrindo como se recebesse um milhão de dólares para alimentar os bichos que viviam se sujando na terra.

- Eles já devem voltar, Marcos! - falou Cláudia para o marido - Sim, Marina. Tão dizendo por aí que o padre anda visitando as quenga!

- Jura?

- Juro!

- Eu não posso acreditar numa coisa...

Antes que ela pudesse completar a frase, teve 80% da batata da perna arrancada de seu corpo com duas mordidas ferozes do gato de cor cinzenta com listras quase negras. O bichano não suportou o grande naco de pele em sua boca e o jogou no chão enquanto o sangue derramava em sua pequena e peluda cabeça.

Dava-se para ver o osso misturado com a carne...mas nenhum deles repararam nisso pois o grito de Marina foi assustador. A dor e mais a surpresa causaram um grande impacto em seu sistema nervoso. Gritava.

Os donos do bicho olharam perplexos para os seus animais de estimação. Eles nunca foram de agredir ninguém...nunca o fizeram...mas o cheiro, o cheiro... Baba começou a comer o pedaço humano em que tinha acabado de retirar...ele não ligava para o sabor, mas era aquilo que o alimentaria até o final de sua vida. E o mesmo acontecera com todos os gatos da cidade, os mais de trinta felinos que se reproduziriam contendo as mesmas características do pai...devoradores de carne de pessoas.

O gato devorou a carne numa velocidade incrível enquanto seus donos o olhavam paralisados e a sua vítima gritava sem parar. Baba cravou seus dentes finos mais uma vez no corpo da mulher...e começou a devorar seu tornozelo lá mesmo enquanto o sangue derramava sem parar pelo chão.

- Faça alguma coisa, Marcos! - gritou Cláudia ao ver aquela cena horrenda.

- Por favor!

A gata enfiou suas cinco unhas bem feitas na bochecha de sua dona ao mesmo tempo em que um trovão ecoou. As unhas entravam na pele e um deles alcançou a gengiva velha da mulher e logo retirou como se dissesse: "Cale a boca, maldita!".

Marina tentou bater no gato com a mão direita mas ele se tornara mais ágil e num movimento rápido ele virou a face para a mão que descia em sua direção e com mais força que usara na batata da gorda, ele mordeu o dedo médio dela e trincou os dentes, decepando-o.

A gata cuidou de rasgar a roupa da mulher gorda com as unhas, mas ao mesmo tempo arranhava a barriga dela...retirando gotas de sangue e fazendo uma grande vermelhidão.

Marcos se moveu. Decidiu pegar a espingarda só para dar um tiro para cima com o intuito de assustar os bichos. Seus passos foram apressados e nenhum dos felinos percebeu pois estavam concentrados em seus afazeres. Encaminhava-se em direção a garagem enquanto sua mulher ficava sentada na poltrona da sala como se estivesse grudada lá com os olhos arregalados não acreditando que Babona a machucara. Não podia ser. Não mesmo.

Marcos saiu pela porta dos fundos em direção a garagem ao mesmo tempo em que a gata dava sua primeira mordida na barriga de Marina, retirando um grande naco de carne...uma mordida profunda que já dava para sangrar bem...e uma segunda mordida no mesmo lugar provocou a possível visão de um dos órgãos da mulher. E no mesmo momento em que Baba já tinha avançado para o pé direito.

O homem pulou quando saiu para a chuva forte...gatos de rua, uns sete, avançavam em direção a casa...no caminho daquela porta em que ele estava.

Ficou paralisado enquanto a água lavava todo a sua roupa e sua cabeça careca. A chuva era sempre boa naquela região em que se plantava muito...a maioria da pequena população era formada de agrícolas e dona de casa, mas claro que havia um bordel. E a história do padre corria pela cidade...todo mundo conhecia todo mundo...o Zé Moreira era o homem das piadas. Ele que fazia as moças rirem com cada uma...levava para cama a maioria delas e nunca engravidava nenhuma, pois também era o homem das camisinhas...o que trazia lá da capital e revendia na pequena cidade pelo triplo do preço real.

A terra apesar de molhada ainda estava irregular...esburacada...e isso custou a vida de Marcos. Ele andou para frente num passo lacônico, pisou num buraco e caiu. Torcendo o pé com violência. E tentando impedir sua queda com o braço esquerdo, este foi de mau jeito no solo, quebrando-lhe o braço e quase uma fratura exposta. Uma dor terrível o invadiu...talvez pior do que aquela quando seu pai insistiu quebrar-lhe a pedra do mamilo, dizendo que era coisa de mulher tê-lo duro.

Naquele momento já era velho e não tinha muita resistência, acabou desmaiando com a dor. Bateu a traquéia na borda de um grande buraco que estava com uma boa quantidade de água aglomerada...o rosto de Marcos entrou nela no momento em que a gata devora pela primeira vez uma tripa de alguém e que Baba desaparece o joelho direito para baixo de Marina só deixando os ossos. Cláudia ainda olhando com seus grandes olhos incapaz de fazer alguma coisa e sorte dela não ter visto o azar do marido.

Os felinos famintos devoram rapidamente a carne do corpo de Marcos...deixando apenas o rosto...suas vísceras serviram bem para os bichos...um dos gatos morreu engasgado com um grande pedaço do testículo esquerdo do homem morto...devoraram-no.

Cláudia ainda sangrava com os furos que a sua gata dera...virara praticamente uma vegetal naquela poltrona e nem observara os passos rápidos que invadiam a sala enquanto seus próprios gatos comiam a sua melhor amiga...um deles devorava o pé esquerdo e outro tinha o fígado dela na boca ensangüentada.

Cláudia se limitava a olhar e nunca mais fez outra coisa na vida. Os gatos não permitiram.

por Saulo Dourado